Auxílio Emergencial: devolver ou não devolver: eis a interpretação

A Lei Federal nº 13.982, de 2 de abril de 2020, que alterou a Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, dispõem sobre parâmetros adicionais de caracterização da situação de vulnerabilidade social para fins de elegibilidade ao benefício de prestação continuada (BPC), e estabelece medidas excepcionais de proteção social a serem adotadas durante o período de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (Covid-19) responsável pelo surto de 2019, a que se refere a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Em seu art. 2º, § 2º-B é claro quanto a questão de se fazer devolver o benefício ao agraciado que no ano tenha que pagar Imposto de Renda ao fazer a Declaração de Ajuste Anual:

Art. 2º Durante o período de 3 (três) meses, a contar da publicação desta Lei, será concedido auxílio emergencial no valor de R$ 600,00 (seiscentos reais) mensais ao trabalhador que cumpra cumulativamente os seguintes requisitos:

(…)

§ 2º-B O beneficiário do auxílio emergencial que receba, no ano-calendário de 2020, outros rendimentos tributáveis em valor superior ao valor da primeira faixa da tabela progressiva anual do Imposto de Renda Pessoa Física fica obrigado a apresentar a Declaração de Ajuste Anual relativa ao exercício de 2021 e deverá acrescentar ao imposto devido o valor do referido auxílio recebido por ele ou por seus dependentes(Incluído pela Lei nº 13.998, de 2020). (Grifamos)

Não entrando no mérito de ser justo ou não justo, de não escalonar o valor do que se tem a pagar, mas apenas nos atentando ao texto literal da Lei Federal, não há dúvidas para nos afastarmos de um entendimento simples:

  1. Que ficam obrigados a apresentar a DECLARAÇÃO DE AJUSTE ANUAL (DAA) em 2021, que tem por base o ano calendário de 2020, quem recebeu valor superior da primeira faixa da tabela progressiva anual do IRPF, ou seja, R$ 22.847,76. Isto significa que valores recebidos além deste teto estão sujeitos à tributação.
  2. A apresentação da DAA não significa afirmar que o declarante tem que pagar imposto, significa que tem que apresentar seus rendimentos, suas despesas e seus bens.
  3. E ainda, fica claro que somente terá que devolver o auxílio recebido se tiver imposto devido. A expressão “acrescentar ao imposto devido o valor do auxílio recebido por ele ou por seus dependentes” não deixa margem para interpretações. O legislador foi cristalino ao fazer devolver o auxílio a quem tem imposto a pagar, tanto que usa o termo “acrescentar”, ou seja, crescer, aumentar, juntar. O legislador não expressou que bastava receber valor acima da primeira faixa da tabela progressiva, ele impôs a condição de ainda que apurar imposto a pagar.

Para quem não recebeu o auxílio emergencial, com base na IN RFB nº 2010 de 24 de fevereiro de 2021, está obrigado apresentar a Declaração de Ajuste Anual referente ao exercício de 2021 a pessoa física residente no Brasil que, no ano-calendário de 2020 recebeu rendimentos tributáveis, sujeitos ao ajuste na declaração, cuja soma foi superior a R$ 28.559,70 (vinte e oito mil, quinhentos e cinquenta e nove reais e setenta centavos). Isto ocorre por um simples cálculo:

Assim, demonstra-se que após lançar seus rendimentos tributáveis e subtrair pelo desconto legal de 20% sobre o mesmo encontra-se a base de cálculo para aplicar alíquota da tabela progressiva, que neste caso será isento de pagamento. Desta maneira, a RFB de forma inteligente e eficiente, uma quantidade enorme de declarações que não teriam imposto a pagar ao Estado brasileiro não precisam ser enviadas.

Continuando neste raciocínio e aplicando os ditames da Lei Federal nº 13.982/2020, vamos demonstrar dois exemplos:

Exemplo 1:

Neste caso, cumprindo a exigência legal de apresentar a DAA, não há imposto a pagar e conforme a lei em comento não há como adicionar a devolução do auxílio emergencial, pois como já colocamos, não tem como adicionar valor a algo que não existe.

Para a RFB este declarante teria que devolver os R$ 1.800,00, mesmo não tendo IR a pagar.

Aprofundando ainda mais o assunto sobre o art. 2º, já transcrito neste paper, temos o inciso IV:

IV – cuja renda familiar mensal per capita seja de até 1/2 (meio) salário-mínimo ou a renda familiar mensal total seja de até 3 (três) salários mínimos;

Imaginamos que o os R$ 24.800,00 seja renda de um casal com três filhos menores e aí teríamos a seguinte conta:

Neste caso a família estaria dentro das duas condições estabelecidas por lei, mas teria que devolver o recurso.

Exemplo 2:

Neste exemplo chegamos a uma base de cálculo com valor superior a faixa de isenção, o que culminaria com imposto a recolher e neste caso sim, aplicar a determinação legal de acrescentar ao imposto pago a devolução do auxílio emergencial recebido.

No entanto, conforme entendimento da RFB, somente pelo fato de ter recebido valor maior que R$ 22.847,76 é motivo de devolução do auxílio emergencial, fato que contestamos diante do texto legal já demonstrado.

Da mesma forma que o exemplo 1 apresenta-se o mesmo cálculo:

Novamente a família estaria dentro das duas condições estabelecidas por lei, mas teria que devolver o recurso porque teria imposto devido.

A seguir apresenta-se as orientações e ações da RFB para levar a cabo esta sua interpretação: Em acesso: https://www.gov.br/cidadania/pt-br/servicos/auxilio-emergencial/imposto-de-renda-x-auxilio-emergencial

3 – Quais valores precisam ser devolvidos?

Todos os valores recebidos do Auxílio Emergencial (parcelas de R$ 600,00 ou R$ 1.200,00*, do auxílio previsto na Lei 13.982/2020) pelo titular e dependentes de declarações do Imposto de Renda com rendimentos tributáveis, sem contar o auxílio, em valor acima de R$ 22.847,76.

Não é necessário devolver os valores recebidos a título da extensão do auxílio (parcelas simples de R$ 300,00 ou de R$ 600,00*, previstas na MP 1.000/2020).   

* Parcelas duplas para mães monoparentais.

4 – Como devolver?

Após o envio da Declaração de Ajuste Anual do Imposto de Renda Pessoa Física 2021 (IRPF 2021), o programa gerará automaticamente um Documento de Arrecadação de Receitas Federais (DARF) adicional com os valores identificados como Auxílio Emergencial recebido pelos titulares e dependentes de declarações que apresentem rendimentos tributáveis, sem contar o auxílio, em valor acima de R$ 22.847,76.

Será gerado um DARF para cada CPF que tenha recebido Auxílio Emergencial.   

Outra opção é realizar a devolução via Guia de Recolhimento da União – GRU, acessando o seguinte link: https://devolucaoauxilioemergencial.cidadania.gov.br/devolucao 

A seguir apresenta-se a figura do sistema do IRPF2021 da RFB:

Nota-se que o sistema aparta o DARF de Devolução do Auxílio Emergencial do DARF do IRPF. Este ponto não é questionável, mas sim quando da obrigatoriedade de devolver o recurso. Da maneira que está sendo feito estamos penalizando famílias em estado de vulnerabilidade, objetivo maior da Lei 13.982/2020, ao deixar de aplicar o desconto legal de 20% sobre o montante do total tributável com base numa interpretação que não parece ser vontade do legislador.

Em derradeira cabe ainda esclarecer que a devolução está sendo cobrada de maneira única, não podendo ser parcelada conforme qualquer imposto de renda devido. Como a Lei Federal não entrou no mérito da questão da forma de devolução, a RFB normatizou a devolução em forma única.

Não precisamos aprofundar em qualquer demonstrativo de cálculo para perceber que o percentual do valor da devolução do auxílio emergencial sobre os rendimentos anuais auferidos alcança valores que afrontam o princípio da razoabilidade, criando para o cidadão uma obrigação que vai lhe prejudicar mais do que o alívio que teve ao receber o recurso.

Um caso para imaginar e refletir: Dois cidadãos que perderam o emprego no mês de março de 2020, tiveram três meses recebendo o auxílio desemprego, posteriormente tiveram três meses no auxilio emergencial e conseguiram emprego a partir de agosto, conforme quadro a seguir:

Cálculo do Seguro Desemprego

Pelas regras da RFB o CIDADÃO 1 teria que devolver R$ 1.800,00 a vista e o CIDADÃO 2 não teria obrigatoriedade de declarar e consequentemente não devolver nada, pois o primeiro teve renda tributável acima de R$ 22.847,76 e o segundo foi abaixo.

Pergunta-se:

  • O auxílio emergencial foi para ajudar num momento de crise e desespero?
  • Houve alguma má fé do CIDADÃO 1 em obter este valor mensal de R$ 600,00 por três meses?
  • O que diferencia a faixa de renda dos dois cidadãos no exemplo acima?
  • Onde está o princípio tributário da Isonomia?

CONCLUSÃO

No momento que consideraram o auxílio emergencial como tributário, mas não permitiram que se somassem aos demais rendimentos tributáveis e aplicasse o desconto legal de 20% para se achar a real base de cálculo para aplicação das alíquotas, criou-se esse monstro sobre uma camada vulnerável de nossa sociedade.

Além da situação de se efetuar a devolução do auxílio emergencial, esta deverá ser feita em cota única pelo seu valor integral, não permitindo que tenha a mesma prática de parcelamento para o imposto de renda. Considerando a situação financeira das famílias e o momento de pandemia que ainda vivenciamos, vislumbramos que poucas pessoas terão como concretizar a devolução.

É URGENTE a revisão desta medida onde sugere-se, no mínimo, a proposição do parcelamento nos moldes do pagamento do IRPF, em até 8 quotas com juros SELIC.

Autores:

Carlos Eduardo Ribeiro: Escritor e Contador. Mestre em Ciências Contábeis pela UERJ, Professor da Universidade Federal Fluminense. Co-autor dos livros: Entendendo o Plano de Contas Aplicado ao Setor Público; Entendendo a Contabilidade Orçamentária Aplicada ao Setor Público; Entendendo as Demonstrações Contábeis Aplicadas ao Setor Público; Finanças Públicas em Tempos de COVID-19; Você sabe com quanto o Governo Federal auxiliará os Entes da Federação para ajudar no combate da COVID 19?.

Anderson Nunes Fraga: Contador. Mestre em Ciências Contábeis pela UERJ, Doutorando em Ciências Contábeis pela FUCAPE. Professor da i10 Escola de Negócios. Professor de Programas de Pós Graduação.

Fontes:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13982.htm

http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?visao=anotado&idAto=115476

https://www.gov.br/cidadania/pt-br/servicos/auxilio-emergencial/imposto-de-renda-x-auxilio-emergencial


2 comentários sobre “Auxílio Emergencial: devolver ou não devolver: eis a interpretação

  1. Muito bom, Carlos Eduardo e Anderson Fraga!!!

    Excelente análise sobre as distorções causadas pelo tratamento da questão do Auxílio Emergencial!!!

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