Receitas e Despesas no Enfoque Orçamentário e Patrimonial, um Desafio da Contabilidade Pública

Numa avaliação sobre as mudanças da CASP que estão em curso desde a publicação da já revogada Resolução 1.111/07 pelo Conselho Federal de Contabilidade, onde já alcançamos a convergência às International Public Sector Accountant Standards (IPSAS) publicadas pela International Federation of Accountants (IFAC), me deparo ainda com profissionais com dúvidas a respeito dos fatos geradores de receitas e despesas no âmbito do orçamento e no mundo patrimonial.

Esta avaliação me pegou pensando no inesquecível professor Lino Martins, ou simplesmente Mestre Lino, como o costuma chamar, e as infindáveis conversas que tínhamos e lembrei-me de um artigo que apresentamos no 19º Congresso Brasileiro de Contabilidade, na histórica Belém, onde tenho grandes amigos e possui competentes profissionais da Contabilidade Aplicada ao Setor Público.

Por mais que o tempo tenha passado e tantas coisas tenham mudado, acho que alguns conceitos podem ser trazidos à tona e lembrarmos além do fundamento técnico, a memória de um dos mais importantes profissionais de nossa área.

A Lei 4.320/64 está dividida em dois campos: o orçamentário dos artigos 1 ao 82 e o contábil dos artigos 83 até ao 106. As mudanças foram imprescindíveis para a aplicação integral do princípio da competência e a evidenciação das alterações da situação líquida patrimonial abrangendo não só os resultados da execução orçamentária como também as demais variações dos elementos do Ativo e do Passivo com vistas à prestação de contas, tomada de decisão e a accountability.

A convergência da contabilidade às normas contábeis internacionais foi uma necessidade imposta pela integração dos mercados e uma exigência de investidores e credores. A Contabilidade Governamental segue a mesma tendência, dada a necessidade de elevar a eficiência, eficácia e efetividade no setor público. Para isso a Contabilidade Governamental não poderia continuar dando ênfase apenas aos aspectos orçamentários e legais.

A “revolução contábil do setor público” não alterou a legislação vigente ou incluiu a promulgação de uma nova legislação. As mudanças anunciadas estão fulcradas na correta interpretação do texto da Lei Federal com a leitura mais atenta dos seus dispositivos mormente a partir Capítulo IX – A Contabilidade.

A STN, conforme previsão no artigo nº 113 da Lei 4.320 por meio da Portaria nº 665, de 30/11/2010 atualizou os Anexos nº 12 (Balanço Orçamentário), nº 13 (Balanço Financeiro), nº 14 (Balanço Patrimonial), nº 15 (Demonstração das Variações Patrimoniais), nº 18 (Demonstração dos Fluxos de Caixa), nº 19 (Demonstração das Mutações no Patrimônio Líquido) e nº 20 (Demonstração do Resultado Econômico) da Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964.

Ao que parece, o enfoque estritamente orçamentário levava os intérpretes da lei a uma deficiência visual temporária tendo em vista que o enfoque patrimonial já estava presente na Lei 4.320/64 nos seguintes artigos:

“Art. 89 – A contabilidade Evidenciará os fatos ligados à administração orçamentária, financeira, patrimonial e industrial.” (grifamos)

“Art. 100 – As alterações da situação líquida patrimonial, que abrangem os resultados da execução orçamentária, bem como as variações independentes dessa execução e as superveniências e insubsistências ativas e passivas, constituirão elementos da conta patrimonial.” (grifamos)

“Art. 104 – A Demonstração das Variações Patrimoniais evidenciará as alterações verificadas no patrimônio, resultantes ou independentes da execução orçamentária, e indicará o resultado patrimonial do exercício.” (grifamos)

A adoção dos Princípios de Contabilidade constitui as vigas-mestras da ciência contábil e seu núcleo central, deve ser aplicado a todo patrimônio, independentemente das entidades a que pertencem, sobrepondo a qualquer preceito qualificativo, tais como formalidade jurídica, localidade, finalidade para uso.

A questão recorrente de todas as alterações é quanto ao reconhecimento das receitas e das despesas, dissociando a esfera orçamentária da esfera patrimonial. O ponto de partida para o entendimento está apoiado na leitura do artigo 35 da Lei Federal que assim estabelece:

“ Art. 35 – Pertencem ao exercício financeiro:
        I – as receitas nele arrecadadas;
 II – as despesas nele legalmente empenhadas.”

A abordagem sobre esse tema permite visualizar a estrutura da Lei 4.320/64, ou seja, a “espinha dorsal” como os assuntos e temas são distribuídos segundo a vontade do legislador.

Quadro 1 – Estrutura da Lei nº 4.320/64

Assim, a estrutura da Lei revela que do Título I ao Título VIII, são tratados os assuntos relacionados com o orçamento enquanto no Título IX é tratado tema indicativo do controle do patrimônio como objeto de estudos da contabilidade e no título X é abordado tema específico relativo a autarquias e outras entidades.

Como pode ser verificado o art. 35 está inserido no Título IV, que se refere ao Exercício Financeiro indicando regras especificas para a apropriação de receitas e despesas segundo os critérios que menciona, ou seja, de que são receitas as que forem arrecadadas no exercício e despesas as que sejam legalmente empenhadas. Refere-se, portanto à execução da Lei de Orçamento e neste sentido, obriga a que todos os atos com ele relacionados estejam aderentes à conformidade da Lei Anual. Entretanto, tal dispositivo não tem qualquer relacionamento com as mutações da massa patrimonial. Na esfera orçamentária, receita é todo ingresso disponível para cobertura das despesas orçamentárias, e assim corrobora o seu art. 3º:

“Art. 3º – A Lei de Orçamentos compreenderá todas as receitas, inclusive as de operações de crédito autorizadas em lei.” (BRASIL, Lei 4.320/1964)

O texto legal define operações de crédito como receita, mas somente no âmbito orçamentário, pois a entrada de recurso financeiro no Ativo vai gerar um aumento no Passivo quando se registrar a obrigação assumida pelo ente tomador do empréstimo financeiro.

No âmbito do orçamento não há preocupação de se caracterizar como receita o fato que gera reflexos positivos no Patrimônio Líquido, mas sim todos os recursos auferidos pelo órgão para custear suas obrigações. Excetuam-se o entendimento de receita orçamentária, as operações de crédito por antecipação da receita (ARO), as emissões de papel-moeda e outras entradas compensatórias, no ativo e passivo financeiros.

De acordo com Ribeiro (2004, p.18):

 “A ARO tem por finalidade uma antecipação da receita, aonde a Administração vai ao mercado financeiro para buscar empréstimos com a finalidade de reforçar seu caixa e/ou saldar suas despesas. Isso acontece, geralmente, no início do exercício financeiro, quando o Tesouro ainda não conseguiu realizar a receita prevista em seu orçamento, mas as despesas continuam a ocorrer. Estes empréstimos têm que ser saldados até o término do exercício financeiro que o originou”.

Fica claro que a ARO é um empréstimo de curto prazo, tomado e saldado dentro do exercício financeiro, não constando no orçamento como fonte de recurso anual.

As normas da Secretaria do Tesouro Nacional (STN) mostram com clareza que a nomenclatura de receita orçamentária para a realização dos recursos financeiros independe da ocorrência de qualquer variação positiva no Patrimônio Líquido da entidade. Tal procedimento está apoiado no inciso I do art. 35, que estabelece como condição para pertencimento ao exercício que a receita tenha sido efetivamente arrecadada.

Pelo enfoque patrimonial o que importa não é necessariamente a efetiva arrecadação, a Contabilidade deverá registrar as Variações Patrimoniais Aumentativas (VPA) decorrentes do aumento dos valores ativos na sua condição de elementos patrimoniais geradores de benefícios econômicos ou potenciais futuros. Para exemplificar mostrar-se-á alguns exemplos.

  • Quanto a Receita

Quadro 2 – Operação de Crédito

Neste caso verifica-se que a receita orçamentária é reconhecida pelo regime de caixa, quando do ingresso do recurso financeiro, enquanto que patrimonialmente é contabilizado o aumento de uma conta do Ativo e do Passivo, não afetando o Patrimônio Líquido e por conseqüência não transitando no resultado do exercício.

Quadro 3 – Alienação de Bens Móveis

Nesta situação a receita orçamentária é reconhecida pelo regime de caixa, quando do ingresso do recurso financeiro, enquanto que patrimonialmente é contabilizado o aumento de uma conta do Ativo e a redução de outra conta do Ativo, não afetando o Patrimônio Líquido e por conseqüência não transitando no resultado do exercício, considerando que o valor da alienação é igual ao valor contábil do bem, se fosse menor ou maior aí teríamos um impacto no resultado por meio de uma VPD ou VPA.

Quadro 4 – Lançamento do IPTU

Na situação acima a receita orçamentária não é reconhecida, pois não há ingresso do recurso financeiro, assim, o orçamento do período não é realizado, enquanto que patrimonialmente é contabilizado o aumento de uma conta do Ativo e a Variação Patrimonial Aumentativa, que afetará positivamente o Patrimônio Líquido e por conseqüência transitando no resultado do exercício.

Quadro 5 – Arrecadação de IPTU

Nesta situação verifica-se que no momento da arrecadação do imposto há o reconhecimento da receita orçamentária, utilizando-se o regime de caixa. Patrimonialmente é contabilizado o aumento de uma conta do Ativo (Banco) e a redução de uma conta do Ativo (Impostos a Arrecadar – IPTU), não afetando o Patrimônio Líquido e por conseqüência não transitando no resultado do exercício, fato este já ocorrido conforme exemplo anterior.

As contabilizações efetuadas demonstram a dissociação da receita orçamentária da receita patrimonial. A primeira utiliza o regime de caixa e objetiva uma avaliação de gestão de curto prazo, da capacidade do governo realizar o orçamento. Não influencia o Patrimônio Líquido da entidade. A segunda cumpre o princípio da competência e registra todas as variações que aumentarão a situação líquida, sendo primordial para uma gestão de longo prazo.

Quanto às despesas, segundo Silva (2009, p.240) são “[…] todos os desembolsos efetuados pelo Estado no atendimento dos serviços e encargos assumidos no interesse geral da comunidade, nos termos da Constituição, das leis, ou em decorrência de contratos ou outros instrumentos”. Assim, a STN convencionou a nomenclatura de despesa orçamentária para todos os desembolsos dos recursos financeiros, independentemente se haverá ou não variação negativa no Patrimônio Líquido da entidade.

  • Quanto a Despesa

Diferentemente do enfoque orçamentário, a STN convencionou que as alterações quantitativas negativas no Patrimônio Líquido serão classificadas como Variações Patrimoniais Diminutivas (VPD), independentes do desembolso financeiro. Para exemplificar mostrar-se-á alguns exemplos:

Quadro 6 – Aquisição de Material Permanente

O quadro acima mostra que a despesa orçamentária é reconhecida no momento do Empenho, enquanto que patrimonialmente a obrigação é reconhecida pela competência, no estágio da Liquidação.

Quadro 7 – Reconhecimento mensal da despesa de 13º Salário

O quadro acima mostra que a despesa orçamentária é reconhecida posteriormente ao reconhecimento patrimonial. Ao ocorrer o fato gerador há lançamento para registrá-lo, o que demanda um aumento de Passivo não financeiro, ou seja, permanente e o reconhecimento da despesa patrimonial pelo regime de competência, gerando um impacto diminutivo no Patrimônio Líquido. Posteriormente, no momento de ocorrer o pagamento haverá os lançamentos orçamentários, empenho, liquidação e pagamento.

CONCLUSÃO

Verifica-se que os dois mundos, orçamentário e patrimonial, podem ser aplicados isoladamente e que o regime do mundo orçamentário por ser menos complexo e mais fácil de gerenciar também tem vários pontos críticos, como não informar sobre questões futuras, não atende às demandas mais complexas dos tomadores de decisão e por isso precisa ser completado pela contabilidade baseada na competência para fornecer um quadro mais completo das responsabilidades e do custo das operações. Juntos, os dois sistemas fornecem uma informação completa, apropriada para tomada de decisões e planejamento a longo prazo.

Na Contabilidade Aplicada ao Setor Público utilizamos o termo Variação Patrimonial Aumentativa para as Receitas e Variação Patrimonial Diminutiva para as Despesas, ambas sobre o enfoque patrimonial, ou seja, para o reconhecimento das variações patrimoniais quantitativas segundo o regime de competência. Por outro lado os termos Receita e Despesa na CASP são relativos ao enfoque orçamentário, essa distinção surgiu devido o impacto das mudanças e a necessidade de deixar claro a separação dos dois mundos o orçamentário e patrimonial. Existia uma grande preocupação, em especial por parte de técnicos do TCU, que esta mudança pudesse gerar confusão no entendimento dos profissionais que lidam na área pública e desta forma pudesse comprometer a fidedignidade das informações em especial no conceito do que é um ativo financeiro e passivo financeiro à luz da Lei nº 4.320. Entretanto nas normas internacionais não existe esta diferença na terminologia da receita e despesa em função dos seus momentos: competência e caixa. O que caracteriza ser patrimonial ou financeira depende do fenômeno a ser reconhecido.

Existe um debate no setor público, em função da evolução do processo de convergência, se já seria o momento de abolirmos os termos VPA e VPD e passarmos a tratar apenas como Receitas e Despesas, como é o padrão internacional e também da contabilidade geral. Em nossa opinião entendemos ainda ser temerário esta alteração, em especial em função da realidade da contabilidade dos nossos municípios, que em grande parte  são serviços prestados por empresas terceirizadas que dificulta o uso de sistemas com inteligência e segurança necessárias para assegurar este tratamento diferenciado.

A União, os Estados, o DF e os grandes municípios possuem sistemas mais robustos e nas suas estruturas administrativas uma equipe técnica de contabilidade mais preparada tecnicamente, entretanto não é a realidade da grande maioria dos nossos municípios que muitas vezes nem possuem uma área contábil na sua estrutura administrativa.

Portanto precisamos avançar na qualidade das soluções de sistemas informatizados que devem ser concebidos à luz do Decreto 7.185/2010 e da Portaria STN nº 548, DE 22 DE NOVEMBRO DE 2010 que dispõe sobre o padrão mínimo de qualidade do sistema integrado de administração financeira e controle, no âmbito de cada ente da Federação, nos termos do art. 48, parágrafo único, inciso III, da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000.

Agradecimentos: Ao amigo Gilvan Dantas, Contador e Auditor Federal de Finanças e Controle da Secretaria do Tesouro Nacional, pela revisão do artigo e contribuições.
Sinto-me honrado pela confecção da CONCLUSÃO deste material que foi em homenagem ao grande professor Lino Martins, que nos inspirou em tantos momentos na Contabilidade Pública. Fica aqui o que ele dizia: “pense grande, comece pequeno e evolua sempre”.

BIBLIOGRAFIA SUGERIDA:

FEIJÓ, Paulo Henrique; RIBEIRO, Carlos Eduardo Inacio; CARVALHO JÚNIOR, Jorge Pinto de;. Entendendo o Plano de Contas Aplicado ao Setor Público. 2ª Ed. Série Entendendo CASP. Brasília: Gestão Pública, 2017.

FEIJÓ, Paulo Henrique; RIBEIRO, Carlos Eduardo Inacio; CARVALHO JÚNIOR, Jorge Pinto de;. Entendendo a Contabilidade Orçamentária Aplicada ao Setor Público. Série Entendendo CASP. Brasília: Gestão Pública, 2015.

FEIJÓ, Paulo Henrique; RIBEIRO, Carlos Eduardo; RODRIGUES, Menezes Leandro; DANTAS, Gilvan. Entendendo as Demonstrações Contábeis Aplicadas ao Setor Público.Série Entendendo CASP. Brasília: Gestão Pública, 2017.


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